quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Houve um tempo...

Houve um tempo, durante muito tempo, em que amei muito, desmesuradamente. Amei mais do que devia pelo meu próprio bem, queria mais ao outro do que queria a mim, não via senão o outro e acreditava piamente que o sentimento era em tudo recíproco.
Houve um tempo, durante muito tempo, em que acreditei no para sempre, em que inconscientemente me privei de amizades e da vida em prol do outro, porque a minha vida era o outro.
Houve um tempo, durante muito tempo, em que acreditei em príncipes encantados e na nobreza de sentimentos dos homens.
Houve um tempo, durante muito tempo, em que fui tratada como uma princesa dos contos de fadas e em que acreditei que era porque me amavam; mentira, era pura e simplesmente por egoísmo, por narcisismo do outro. Afinal de que outra forma se mantém uma mulher completamente rendida senão tratando-a muito bem?
Houve um tempo em que, contra tudo aquilo em que eu acreditava, a vida me mostrou que as traições podem ser perdoadas, dependendo do tamanho da nossa dependência emocional do outro.
Houve um tempo em que hipotequei a minha vida, construída sobre um castelo de cartas que habilmente me levaram a acreditar ser de pedra sólida.
Esse tempo acabou no dia em que percebi que perdoei uma traição, mas não conseguirei nunca perdoar uma deslealdade. A deslealdade é uma faca que nos cravam nas costas e que nunca mais a conseguem de lá tirar, a deslealdade aniquila tudo aquilo em que acreditávamos, a deslealdade faz-nos descer das nuvens e ver a verdade nua e crua da podridão do outro. A deslealdade acaba com a nossa inocência, com a nossa capacidade de algum dia voltar a acreditar no para sempre. A deslealdade mata-nos a pureza de sentimentos, mas torna-nos mais fortes, ensina-nos que na vida devemos gostar sempre mais de nós do que dos outros.

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Maria Luísa casou-se aos dezoito anos. Engravidou de um rapaz poucos anos mais velho e os pais, porque parecia mal se não o fizesse, obrigaram-na a casar-se ainda antes que a barriga de grávida se fizesse notar. Não interessava se diziam à boca pequena que o rapaz era toxicodependente, completamente agarrado à heroína, o importante era que a honra da família fosse salva.
Casaram, ficaram a viver em casa dos pais de Maria Luísa que foram patrocinando tudo, uma vez que nenhum dos dois tinha emprego. Passado uns meses nasceu uma menina linda e o avô, pessoa muito estimada pelos empresários da zona, conseguiu arranjar emprego para os pais da criança. Maria Luísa manteve o emprego durante uns anos, mas no caso do marido tudo era bem mais complicado. A dependência da heroína levava-o a faltar demasiado ao trabalho, o salário que recebia não lhe pagava o vício, acabou por não se aguentar em emprego nenhum e daí até começar a roubar os sogros foi um piscar de olhos.  Eram jóias que desapareciam, assaltos forjados para justificar o desaparecimento de electrodomésticos, uma verdadeira tortura para os sogros que foram gastando grande parte do pé de meia que tinham, para não passarem pela vergonha de ver o pai da neta a roubar as pessoas de fora.
No meio de tudo isto, Maria Luísa não abandonou nunca o pai da sua filha. Sem nunca ter cedido ao vício do marido, não o deixava ir sozinho comprar a droga, nunca permitiu que consumisse num canto qualquer, esteve sempre lá para o levar de volta a casa. Nunca se lhe ouviu um lamento que fosse, nunca teve uma palavra em desfavor do marido. Aguentou estoicamente, acompanhou-o em muitas e infrutíferas desintoxicações, mas acabou por ter que abandonar a casa dos pais que, mesmo continuando a pagar todas as despesas, lhe pediram que pusesse fim ao tormento que se vivia naquela casa. Mudou-se com o marido e a filha para um apartamento pago pelos pais, onde se aguentou durante uns meses, mas o facto da filha se começar a aperceber do problema do pai e de o dinheiro ser cada vez menos para alimentar o vício do marido, levou-a a fazer-lhe o ultimato de que ou se tratava de vez, ou o casamento de quase sete anos ficava por ali. Conseguiu que o marido percebesse que estava na hora de mudar a vida, escolheram um centro de reabilitação em França, onde ele passou quase um ano a trabalhar de sol a sol e de onde veio livre do vício.
Reorganizaram a vida, criaram uma empresa onde trabalharam que nem mouros durante uns anos, tiveram uma segunda filha, a vida corria-lhes de feição, até que a crise atingiu o Vale do Ave e as coisas começaram a correr menos bem. Mudaram de ramo, continuaram a trabalhar, mas a má sorte e algumas más escolhas levaram-nos a uma situação financeira muito delicada e mais uma vez os pais de Maria Luísa tiveram que recorrer às poupanças para ajudar a filha. Pelo meio, o cancro e o alcoolismo do pai de Maria Luísa que se agravou à medida que via a vida da filha a ficar mais complicada. Há um ano que o pai da Maria Luísa perdeu a vida para o cancro e o álcool. Há dois anos que o marido da Maria Luísa se vê a braços com um cancro na bexiga. Maria Luísa está casada há trinta anos, é uma mulher de fibra, sem papas na língua, que sempre fez só o que bem entendia, sem se preocupar com o que os outros pensam, que anda de cabeça erguida mesmo perante todas as adversidades da vida, amiga do seu amigo, de uma lealdade canina àqueles que ama.
A Maria Luísa foi há três semanas trabalhar para Inglaterra, para poder garantir à filha mais nova uma vida digna e sem grandes privações e para tentar aliviar o fardo do marido, que ajuda da melhor forma que pode, estando presente. Não foi para um emprego atrás de uma secretária, foi trabalhar para casa de um árabe, para ajudar a tomar conta dos velhos da família. Maria Luísa, aos quarenta e nove anos, deixou cá as filhas, o marido, a família, os amigos e toda a sua vida, para poder continuar a andar de cabeça erguida e porque acredita que o dia de amanhã pode sempre ser melhor.
Conheço a Maria Luísa há mais de trinta anos, tenho a certeza que muito em breve fará amigos e até aposto que já foi beber umas cervejas ao pub da esquina, mas também sei que está de coração apertado e que chorará muitas vezes quando regressar ao quarto onde dorme, onde ninguém vê as suas fragilidades.
São mulheres como a Maria Luísa aquelas por quem eu sinto verdadeira admiração, as que se fazem à vida de peito aberto, sem constantes lamentações, nem afirmações bacocas de feminismo recalcado. São mulheres como a Maria Luísa que restauram o meu orgulho em ser mulher e que me fazem acreditar que podemos ser melhores, mais mulheres.
A ti, Maria Luísa!

segunda-feira, 21 de março de 2016

A idade não perdoa

Depois de três meses de fisioterapia numa dessas clínicas supostamente especializadas na matéria, cheguei à conclusão que o que lá andei a fazer foi pura perda de tempo e dinheiro. Os profissionais que lá trabalham até podem ser os melhores, mas as administrações não lhes permitem fazer o trabalho como deve ser, atribuem-lhes quatro e cinco doentes ao mesmo tempo, que são largados em cabines minúsculas, ligados a aparelhos que pouco ou nada fazem. Por isso é que vemos tantas vítimas de acidentes e AVCs agarrados a cadeiras de rodas e completamente limitados, depois de andarem meses nesses pseudo centros de fisioterapia.
Mas adiante. Na semana passada marquei uma massagem com uma fisioterapeuta particular e foi vê-la a identificar todas as minhas maleitas só de me pôr as mãozinhas em cima. Então diz que tenho a perna esquerda mais comprida do que a direita (está explicado porque a dobra das calças da perna direita tem sempre que ser mais alta do que a da esquerda), o sacro feito num oito, uma lombalgia e mais uma ou duas coisas também acabadas em "gia", mas que se me escaparam porque já eram maleitas a mais. Parafraseando a minha jovial nova fisioterapeuta, tenho as costas piores do que a calçada portuguesa tamanha é a quantidade de contraturas que por lá habitam. Mas diz ela que isto melhora, com muita coça e umas visitas à sua marquesa a  cada 15 dias diz que chegarei aos quarenta e três com uma coluna quase nova e muita mais esticadinha. Com um bocadinho de sorte pode ser que consiga também esticar-me a perna direita, já que não dá para encolher a esquerda...